segunda-feira, 23 de outubro de 2017

CRÓNICAS DAS ILHAS DE CABO - VERDE ÁFRICA OCIDENTAL

CRÓNICA DE UMA VISITA À COMUNIDADE DOS “RABELADOS” NO INTERIOR DA ILHA DE SANTIAGO DE CABO VERDE.

Nataniel Semedo da Silva 
JOCUM - Jovens Com Uma Missão (Pedra Badejo)

“ESPINHO BRANCO” é uma comunidade bastante peculiar, onde predominam típicas casebres de palha. Discorria o ano de 194, “quando chegaram a Cabo Verde os primeiros padres da congregação do Espírito Santo, que tomaram a seu cargo e em regime de exclusividade a assistência religiosa em toda a ilha de Santiago”. Estes, conhecidos como os padres da batina branca introduziram alterações na celebração da missa proibindo determinados costumes que entraram na tradição popular e criaram raízes, formando como que uma “verdadeira infra estrutura do culto católico”. Durante largos anos o povo realizava estes atos religiosos com o apoio dos seus sacerdotes, os padres de batina preta, a quem os ditos rabelados devem uma grande fidelidade.

Estigmatizados, estes (assim como todos nós!) cabo - verdianos habitam nas montanhas e em lugares de difícil acesso onde no passado distante se refugiaram para se escaparem às perseguições e torturas a que foram submetidos, simplesmente por se terem oposto à introdução do novo sistema de ensino da religião católica em no nosso páis.Ainda hoje vêem com desconfiança alguém que lhes visita pela primeira vez (como foi meu caso quando estive aí).Eu e o valente Jocumeiro Lino Moreira Magno (‘badiu pé ratxádu’ como eu) nos aventuramos em uma jornada inesquecível até aos famosos “Rabelados” da Aldeia de Espinho Branco em Santiago profundo, quase esquecido. 

Não se ouve falar desse lugarejo longínquo de gente remota e indiferente à marcha do tempo! Ao chegarmos deparamos logo de imediato com o “líder espiritual” da “tribo”. Como um guardião de todas as entradas e saídas em eterno plantão ele se apresentou de súbito.Tentando explicar ao que tínhamos ido, o senhor Agostinho nos interrompeu com ar de mistério...“Eu já sabia que veriam.Eu vi vocês (os dois) em um sonho na figura de dois bodes”.Ainda hoje fico arrepiando com esta lembrança.Os bodes a que ele fez menção remeteu-me ao livro de Levíticos e aos bodes expiatórios [mas com certeza não tínhamos ido parar ali naquele “confim do mundo”onde, quiçá “Judas perdeu as botas” para sermos “oferecidos em libação”.Não, o sangue de Jesus tem poder! 

Vigilante, comecei a observar alguns detalhes: Vi quadros onde se via fotografias de Amílcar Cabral, António Mascarenhas Monteiro e Carlos Veiga. Nenhum retrato ou pósteres de dirigentes coloniais do ultramar ou do regime do partido único na ocasião. As mulheres da comunidade, de olhar profundo e reverencial procuravam “ler” a alma daqueles dois visitantes - “invasores” intrépidos tentando esboçar sorrisos tímidos enquanto os anciãos permaneciam num silêncio gelado em meio a um sol para cada um! No culto que nós assistimos leram-se trechos sem seqüência de alguns Evangelhos e Epístolas de uma velhíssima Bíblia de folhas rasgadas e frases inacabadas convidando a raciocínios no vazio e levando a infinitas interpretações (manipuladas). Nhô Agostinho lia pessimamente conseguindo a proeza de interpretar ainda pior. Os fiéis seguidores meneavam a cabeça, sublinhando por baixo em sinal de aprovação as “interpretações” e “sentenciamentos” do “patriarca” Agostinho. 

Ainda hoje me lembro que, sem dinheiro para pagarmos a passagem de volta para a base dos “Jovens Com Uma Missão” na Vila de Pedra Badejo, de boleia num caminhão abarrotado de arreia que nos despejou um pouco antes de chegarmos ao nosso destino final, chegamos vivinhos da Silva e prontinhos para outra. Afinal éramos do ramo. O jocumeiro sai e vai para a terra estranha sempre com “um propósito”, mas sem saber (e nem querer saber!) o que lhe aguarda lá... na distância do futuro!E ISTO É SER JOCUM!


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